Parece-me que hoje todos se esforçam para minimizar a influência real que Kant exerceu na filosofia alemã e sobretudo insinuar prudentemente o valor que ele próprio se atribuía. Kant se orgulhava, antes de tudo, de sua tabela de categorias. Com essa tabela na mão dizia: "Isso é a coisa mais difícil que já pôde ser realizada em prol da metafísica". Compreenda-se bem esse "pôde ser"! Ele se sentia orgulhoso por ter descoberto no homem uma nova faculdade, a faculdade do juízo sintético a priori. Bem que cometeu um erro nesse ponto, pois o desenvolvimento e o rápido florescimento da filosofia alemã não deixam de ter menos participação nesse orgulho e no zelo que incitou a todos os jovens pensadores a descobrir, se possível, alguma coisa que os orgulhasse mais ainda - a descobrir, em todo caso, "novas faculdades". Mas reflitamos um pouco, posto que ainda temos tempo! De que modo são possíveis os juízos sintéticos a priori? se perguntava Kant. E que respondia? Por meio de uma faculdade. mas infelizmente não com essas poucas palavras, e sim de modo tão cerimonioso, tão venerável, com tal esbanjamento de profundidade e filigranas alemãs, a ponto de esquecer a alegre tolice alemã que se oculta no fundo de semelhante resposta. Melhor ainda, todos se sentiram tomados de alegria diante dessa descoberta de uma nova faculdade e o entusiasmo chegou ao cúmulo quando Kant acrescentou uma nova descoberta, uma faculdade moral no homem - pois naquele tempo os alemães ainda eram morais e ignoravam o realismo político. Essa foi a lua-de-mel da filosofia alemã. Todos os jovens teólogos do seminário de Tübingen se dedicaram a pesquisar para descobrir novas "faculdades". E o que foi que não se descobriu, durante esse período ainda tão juvenil da filosofia alemã, esse período inocente e rico, em que o romantismo, gênio maldoso, tocava e entoava sortilégios, quando não se sabia ainda distinguir entre "descobrir" e "inventar"! Descobriram principalmente uma faculdade para as coisa "supra-sensíveis". Schelling a denominou intuição intelectual, satisfazendo assim aos mais fervorosos desejos dos alemães, repletos de aspirações piedosas. A pior injustiça que se pode cometer contra esse impetuoso e entusiasta movimento que era só juventude, embora se disfarçasse audaciosamente com um manto de idéias cinzentas e senis, seria tê-lo levado a sério, tratá-lo realmente com indignação moral. Em resumo, tornaram-se mais velhos - e o sonho se desvaneceu. Chegou o momento em que passaram a esfregar os olhos. Antes de todos e em primeiro lugar, o velho Kant. "Por meio de uma faculdade", havia dito, mas queria dizer pelo menos. Mas isso é uma resposta? Uma explicação? Ou melhor, não é a simples repetição da pergunta? Por que o ópio faz dormir? "Por meio de uma faculdade", pela virtus dormitiva - respondia o médico de Molière:
"Quia est in eo virtus dormitiva
cujus est natura sensus assoupire"
[porque há nele uma faculdade dormitiva,
cuja natureza é entorpecer os sentidos]
Mas semelhantes respostas são convenientes para a comédia e finalmente chegou o tempo de substituir a pergunta de Kant: "Como são possíveis juízos sintéticos a priori?", por uma outra pergunta: "Por que é necessária a crença em tais juízos?" - isto é, de compreender que, para o fim da conservação de seres como nós, é preciso acreditar que tais juízos são verdadeiros; com o que, naturalmente, eles também poderiam ser falsos! Ou, dito de maneira clara e crua: juízos sintéticos a priori não deveriam absolutamente "ser possíveis": não temos direitos a eles, em nossa boca são somente juízos falsos. Mas é claro que temos que crer em sua verdade, uma crença de fachada e evidência que pertence à ótica-de-perspectivas da vida. - Por fim, considerando ainda a enorme influência que a "filosofia alemã" - espero que se entenda o seu direito às aspas - tem exercido na Europa, não se duvide que uma certa virtus dormitiva teve participação nisso: nobres ociosos, virtuosos, místicos, artistas, cristãos três-quartos e obscurantistas políticos de todas as nações estavam encantados possuir, graças à filosofia alemã, um antídoto para o sensualismo ainda predominante que do século anterior transbordou para este; em suma - "sensus assoupire"...
5 comentários:
Válido para 18 de março de 2011.
FELIZ ANIVERSÁRIO!!!!
Te amo! amo! amo!
te amo!
te amo idiota!
te amo muito idiota!
Olá caro professor Giuliano, sou aluno de Psicologia e estou interessado em Nietzsche. Confesso que não estou familiarizado com a linguagem desse homem e estou sentido sérias dificuldades para ler e entender o livro "além do bem e do mal". Podes me orientar como devo solucionar este problema, já estou com quase duas semanas com esse livro e não consigo compreendê-lo. Desde já agradeço muito.
joaopaulo_cefetrn@yahoo.com.br
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