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terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Oração para o ano que se encerra e outro que se inicia


mãe nossa, que estais na terra (nossa própria terra), pai nosso, qualquer coisa nossa, livrai-me:

dos que não podem ficar à toa ao meu lado, dos que não podem amar sem recompensas, dos que não sabem ouvir a música poluída de todo esse barro e dos que sempre preferem chamar a polícia. livrai-me dos que não despregam o olho da cruz. livrai-me, deusas, deuses, forças abissais, abismadas, absurdas, qualquer coisa potente aqui e assim chamada, livrai-me de todos os escritores que trabalham a palavra e não brincam com ela . livrai-me dos alpinistas sociais travestidos de artista. livrai-me dos que não erram, dos que não dão ponto sem nó, dos que não acreditam no impossível e podem (sempre) comprar o possível. livrai-me dos que desconhecem o fracasso, dos que não deixam o menino deus brincar e não interrompem a palavra do pai. livrai- me dos que não abrem as janelas e não se deixam possuir pela ventania. livrai-me dos que nunca perdem o bonde e de nada podem esquecer . livrai-me dos vampiros que não acreditam nos anjos e dos anjos que não enxergam no escuro. livrai-me dos que não sonham acordados e não atravessam a alegria ferida no corpo. livrai-me deus (é natal). livrai-me de mim mesmo. de minhas estúpidas retóricas. de minhas neuroses familiares. livrai-me com forças, deuses e deusas, para que eu possa sumir daqui com nossos rizomas de boutique, com os especialismos de nossas falações terminais pela noite e com nossa verborragia muda. livrai-me do homo lattes que em mim range e habita (homo lattes: sub-espécie do homo sapiens. homo fordista da sabedoria estudada dos idiotas diplomados). livrai-me, deuses, de todos os artistas fascistas da esquerda, da direita, dos centros maliciosos da sabedoria. livrai-me com forças para que eu possa atravessar as chefias dos departamentos mofados da grande fofoca, das teorias conspiratórias, dos segredos de damas enfeitadas de arte, das verborragias de dança, das lombrigas cheias de razão e dos torpedos manufaturados em ambulâncias tristes que cantam bem à noitinha no escuro urbano do corpo.

rezo aos deuses e deusas, a todos os deuses dessa terra misteriosa, para que me dêem memória fresca, vibrações uterinas que inaugurem novas paternidades de fogo, novas ventanias, criações do sempre e do frágil (o frágil que é forte porque se abre à vida): tempestade invisível saudando os tambores do corpo, revelando o espírito imundo que irá nos salvar do medo adulto de perder empregos, perder baladas, perder os medos famigerados de vida. rezo aos deuses, a todos os deuses e deusas, para que o palco e a platéia se explodam, para que a poesia não precise mais da arrogância dos poetas e nem da devoção dos mortais, para que a vida seja mais viva entre nós e para que os deuses se criem sozinhos.

André Monteiro.

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