Por último, mas não menos importante, falaremos dos grandes descobrimentos nos séculos XIV e XV para fechar essa idéia de Renascimento. Para levar a cabo tão ousado empreendimento, os europeus tiveram que mudar suas idéias de como era o mundo – redondo, ao invés de plano e terminando em enormes e inexplorados abismos cheios de monstros – e com o Sol no centro do universo (Heliocentrismo) e não mais a Terra (Geocentrismo). Para isso o desenvolvimento de uma nova ciência foi fundamental.
As mudanças econômicas também aconteceram uma vez que, descoberta a América, grande quantidade de ouro, prata e pedras preciosas chegavam à Europa nos navios vindos do Novo Mundo. Mas a maior mudança foi na concepção do homem, uma vez que aqueles povos do outro lado do Atlântico eram tão diferentes do homem europeu.
Assim fala Montaigne (1533-1592) filósofo francês do período sobre esses povos:
“Essa descoberta de um imenso país parece de grande alcance e presta-se a grandes reflexões (...) não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra (...) Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualificativo de selvagens somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade primitiva. (...) Ninguém concebeu jamais uma simplicidade natural elevada a um tal grau, nem ninguém jamais acreditou pudesse a sociedade subsistir com tão poucos artifícios. É um país onde não há comércio de qualquer natureza, nem literatura, nem matemáticas; onde não se conhece sequer de nome um magistrado, onde não existe hierarquia política, nem domesticidade, nem ricos, nem pobres. Contratos, sucessão e partilhas aí são desconhecidos; em matéria de trabalho só sabem da ociosidade; o respeito aos parentes é o mesmo que dedicam a todos; (...) tratam-se mutuamente por irmãos quando são da mesma idade, e aos mais jovens chamam filhos e pais aos velhos, indistintamente. Quando morrem estes, passam seus bens aos herdeiros naturais; as heranças não são divididas, conservando todos os participantes a posse do todo. O vestuário, a agricultura e o trabalho dos metais, ignoram”.
Montaigne ainda continua: “A região em que habitam esses povos é de resto muito agradável. O clima é temperado a ponto de, segundo minhas testemunhas, raramente se encontrar um enfermo. Afirmaram mesmo nunca terem visto algum epilético, remeloso, desdentado ou curvado pela idade. (...) Têm peixes e carne em abundância, e de excelente qualidade, contentando-se com os grelhar para os comer. O primeiro indivíduo que viram à cavalo inspirou-lhes tal pavor que embora já houvessem estado com ele de outras feitas, o mataram a flechadas e só então o reconheceram. Suas residências constituem-se de barracões com capacidade para duzentas ou trezentas pessoas, e são edificadas com troncos e galhos de grandes árvores enfiadas no solo e se apoiando uns nos outros na cumeada, à semelhança de certos celeiros nossos cujos tetos descem até o chão fechando os lados. Possuem madeiras tão duras que com ela fabricam espadas e espetos para grelhar os alimentos. Seus leitos, formados de cordinhas de algodão, suspendem-se ao teto. Cada qual tem o seu, dormindo as mulheres separadas dos maridos. Levantam-se com o sol e logo merendam, não fazendo outra refeição durante o resto do dia. (...) Em lugar de pão, comem uma substância branca parecida com o coentro cozido. Experimentei, é doce e algo insosso. Passam o dia a dançar; os jovens vão à caça de grandes animais contra os quais usam o arco unicamente. Enquanto isso, uma parte das mulheres diverte-se com preparar a bebida, o que constitui sua principal ocupação.
Todas as manhãs, antes que iniciem a refeição, um ancião percorre o barracão, que tem uns cem passos de comprimento, e prega aos ocupantes sem cessar as mesmas coisas: valentia diante do inimigo e amizade a suas mulheres. Acreditam na imortalidade da alma. As que mereceram aprovação dos deuses alojam-se no céu do lado do nascente, as amaldiçoadas do lado do poente. Sua moral resume-se em dois pontos: valentia na guerra e afeição por suas mulheres. (...) Os homens têm várias mulheres, em tanto maior número quanto mais famosos e valentes.
Esses povos guerreiam os que se encontram além das montanhas. Fazem-no inteiramente nus, tendo por armas apenas seus arcos e espadas de madeira, pontiagudas como as nossas lanças, e ignoram a fuga e o medo. Como troféu traz cada qual a cabeça do inimigo trucidado, a qual penduram à entrada de suas residências. Se entrarem em guerra e saírem vitoriosos, o benefício de sua vitória consiste em unicamente na glória que auferem dela e na vantagem de se terem mostrado superiores em valentia e coragem. Aos prisioneiros não se exige senão que se confessem vencidos. Mas não se encontra um só que não prefira a morte a confessar-se vencido. Nenhum que não prefira ser morto e comido a pedir mercê. Por certo em relação a nós são realmente selvagens, pois entre suas maneiras e as nossas há tão grande diferença que ou eles são os selvagens ou nós o somos.”[1]
Podemos ver por este relato que o homem americano causou tanto estranhamento na Europa que coloca em crise toda a sociedade da época. Se o filósofo vê nesse povo motivo para novas reflexões, os padres verão no Novo Mundo um enorme canteiro de almas inocentes para serem salvas pela palavra de Deus que aqueles ainda não conheciam. Os Jesuítas vêem para a América catequizar os índios, mas a Europa já não era mais a mesma. Uma nova ciência, uma nova arte, uma nova religião, uma nova política, uma nova sociedade, e o retorno da velha pergunta: Quem sou eu? O selvagem do outro lado do Atlântico fez o europeu olhar para si mesmo e voltar a procurar por um fundamento seguro para seu conhecimento e forma de ser no mundo.
As mudanças econômicas também aconteceram uma vez que, descoberta a América, grande quantidade de ouro, prata e pedras preciosas chegavam à Europa nos navios vindos do Novo Mundo. Mas a maior mudança foi na concepção do homem, uma vez que aqueles povos do outro lado do Atlântico eram tão diferentes do homem europeu.
Assim fala Montaigne (1533-1592) filósofo francês do período sobre esses povos:
“Essa descoberta de um imenso país parece de grande alcance e presta-se a grandes reflexões (...) não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra (...) Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualificativo de selvagens somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade primitiva. (...) Ninguém concebeu jamais uma simplicidade natural elevada a um tal grau, nem ninguém jamais acreditou pudesse a sociedade subsistir com tão poucos artifícios. É um país onde não há comércio de qualquer natureza, nem literatura, nem matemáticas; onde não se conhece sequer de nome um magistrado, onde não existe hierarquia política, nem domesticidade, nem ricos, nem pobres. Contratos, sucessão e partilhas aí são desconhecidos; em matéria de trabalho só sabem da ociosidade; o respeito aos parentes é o mesmo que dedicam a todos; (...) tratam-se mutuamente por irmãos quando são da mesma idade, e aos mais jovens chamam filhos e pais aos velhos, indistintamente. Quando morrem estes, passam seus bens aos herdeiros naturais; as heranças não são divididas, conservando todos os participantes a posse do todo. O vestuário, a agricultura e o trabalho dos metais, ignoram”.
Montaigne ainda continua: “A região em que habitam esses povos é de resto muito agradável. O clima é temperado a ponto de, segundo minhas testemunhas, raramente se encontrar um enfermo. Afirmaram mesmo nunca terem visto algum epilético, remeloso, desdentado ou curvado pela idade. (...) Têm peixes e carne em abundância, e de excelente qualidade, contentando-se com os grelhar para os comer. O primeiro indivíduo que viram à cavalo inspirou-lhes tal pavor que embora já houvessem estado com ele de outras feitas, o mataram a flechadas e só então o reconheceram. Suas residências constituem-se de barracões com capacidade para duzentas ou trezentas pessoas, e são edificadas com troncos e galhos de grandes árvores enfiadas no solo e se apoiando uns nos outros na cumeada, à semelhança de certos celeiros nossos cujos tetos descem até o chão fechando os lados. Possuem madeiras tão duras que com ela fabricam espadas e espetos para grelhar os alimentos. Seus leitos, formados de cordinhas de algodão, suspendem-se ao teto. Cada qual tem o seu, dormindo as mulheres separadas dos maridos. Levantam-se com o sol e logo merendam, não fazendo outra refeição durante o resto do dia. (...) Em lugar de pão, comem uma substância branca parecida com o coentro cozido. Experimentei, é doce e algo insosso. Passam o dia a dançar; os jovens vão à caça de grandes animais contra os quais usam o arco unicamente. Enquanto isso, uma parte das mulheres diverte-se com preparar a bebida, o que constitui sua principal ocupação.
Todas as manhãs, antes que iniciem a refeição, um ancião percorre o barracão, que tem uns cem passos de comprimento, e prega aos ocupantes sem cessar as mesmas coisas: valentia diante do inimigo e amizade a suas mulheres. Acreditam na imortalidade da alma. As que mereceram aprovação dos deuses alojam-se no céu do lado do nascente, as amaldiçoadas do lado do poente. Sua moral resume-se em dois pontos: valentia na guerra e afeição por suas mulheres. (...) Os homens têm várias mulheres, em tanto maior número quanto mais famosos e valentes.
Esses povos guerreiam os que se encontram além das montanhas. Fazem-no inteiramente nus, tendo por armas apenas seus arcos e espadas de madeira, pontiagudas como as nossas lanças, e ignoram a fuga e o medo. Como troféu traz cada qual a cabeça do inimigo trucidado, a qual penduram à entrada de suas residências. Se entrarem em guerra e saírem vitoriosos, o benefício de sua vitória consiste em unicamente na glória que auferem dela e na vantagem de se terem mostrado superiores em valentia e coragem. Aos prisioneiros não se exige senão que se confessem vencidos. Mas não se encontra um só que não prefira a morte a confessar-se vencido. Nenhum que não prefira ser morto e comido a pedir mercê. Por certo em relação a nós são realmente selvagens, pois entre suas maneiras e as nossas há tão grande diferença que ou eles são os selvagens ou nós o somos.”[1]
Podemos ver por este relato que o homem americano causou tanto estranhamento na Europa que coloca em crise toda a sociedade da época. Se o filósofo vê nesse povo motivo para novas reflexões, os padres verão no Novo Mundo um enorme canteiro de almas inocentes para serem salvas pela palavra de Deus que aqueles ainda não conheciam. Os Jesuítas vêem para a América catequizar os índios, mas a Europa já não era mais a mesma. Uma nova ciência, uma nova arte, uma nova religião, uma nova política, uma nova sociedade, e o retorno da velha pergunta: Quem sou eu? O selvagem do outro lado do Atlântico fez o europeu olhar para si mesmo e voltar a procurar por um fundamento seguro para seu conhecimento e forma de ser no mundo.
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[1] MONTAIGNE, Michel de. “Ensaios” Dos Canibais.
Muito legal o blog, Giuliano. Esses fragmentos de Montaigne são incríveis, apesar do estranhamento, e de seu quê de admiração pela simplicidade dos selvagens, não abre mão do eurocentrismo, ao tratar os americanos por seres inferiores.
ResponderExcluirSou André Lázaro, professor de História do CELG.
ainda te amo!
ResponderExcluirAprendi a te ver
ResponderExcluirAmar--- desde sempre